14 maio 2011

A bicha de meia e outras histórias

Falar com sotaque brasileiro é quase como falar estrangeiro. Primeiro porque não posso deixar de notar que falo de forma diferente daquela a que eu estou habituado. Segundo porque, como o bom emigrante português que se preze, dentro de casa se fala português de Portugal. Terceiro porque frequentemente dou por mim interrompendo uma conversa em português do Brasil para falar com meu colega português em português de Portugal, só porque "é mais fácil" falar assim. A única diferença entre o português do Brasil e uma língua estrangeira é que os brasileiros entendem português!

Ué, então porquê falar com sotaque do Brasil? Essencialmente por duas razões: para não dar nas vistas falando com um sotaque estranho, e para facilitar a comunicação com os nativos, afinal os brasileiros não cresceram vendo novelas portuguesas, né? Mas não é tão fácil assim como parece. Por melhor que seja o meu sotaque brasileiro, nunca é perfeito, e acabo sempre metendo os pés pelas mãos. Aliás, acabei de fazê-lo novamente, porque brasileiro não diz meter, diz colocar. Tem algumas expressões de cá que não dá para descobrir à primeira, e tem ainda mais expressões de Portugal que não se usam por aqui, e quando as digo lanço logo um sinal de alerta sobre mim que diz "este cara não é daqui!!"

Tudo isto para introduzir a minha história inventada de hoje: ia eu no supermercado, para comprar mamão, mandioquinha, umas carambolas, alguns caquis, duas bistecas, um pouco de contra-filé e um bolo de fubá, quando me lembrei de parar no caixa automático para sacar dinheiro. Então eu chego no caixa, e o que é que eu encontro bem na minha frente? Uma bicha de meia! E eu disse "nossa, gente, o que é que é isso?" e fui-me embora.

Falando de expressões de cá que não são de lá e vice-versa, uma das primeiras coisas que me perguntaram aqui no Brasil foi se em Portugal bicha queria dizer fila. Acho que já estava contando que me fizessem essa pergunta, só não pensei que fosse tão rápido. Tive que lhe dizer que sim, bicha também queria dizer fila, mas já ninguém em Portugal diz bicha ultimamente. Dizem fila, tal como no Brasil. E a culpa é de quem? Dos brasileiros, que um belo dia se lembraram de inventar que bicha queria dizer gay (como se já não existisse viado, boiola, baitola, xibungo para dizer a mesma coisa). Tendo o termo passado para Portugal através das novelas brasileiras, de repente já não se podia dizer "põe-te na bicha" sem ser recebido com risinhos e gozação. E então os portugueses deixaram de dizer bicha, e passaram a dizer fila, que aliás sempre existiu.

Por outro lado, acho um piadão quando aqui dizem "meia" em vez de "seis". Oito cinco meia sete, dois meia sete oito. Quem não se lembra do "dois três quatro cinco meia sete oito, está na hora de molhar o biscoito" de Gabriel o Pensador? Cheguei a perguntar a uma brasileira se não ficava confundida quando perguntava as horas para alguém e lhe diziam que eram onze e meia. Como assim, onze e meia? Onze e meia é onze e trinta ou é onze e seis? Então e se fosse meia e meia? Para cortar o meu barato, ela me disse que não se usa "meia" em vez de "seis" para dizer as horas, só se for em números de telefone, ou para soletrar um número comprido para alguém. E porquê se diz meia? Porque seis se confunde com três, que os brasileiros dizem "trêis" (os portugueses dizem "trés", por isso aí não há confusão). Então se há confusão, porque não substituir o três em vez do seis? Bem, você é chato, não? Porque seis sempre é meia dúzia, e três é... bem, três não é nada.

Portanto, para quem tinha dúvidas sobre minha historinha, aquilo que eu vi no caixa automático do supermercado não era um homossexual vestindo collants. Era simplesmente uma fila de seis pessoas. Claro que eu não ia ficar esperando por todos eles e perdendo o meu tempo!

Mas como bicha é português e meia é brasileiro, e como bicha já não se usa e meia só se usa para números de telefone, é claro que a história só podia ser inventada.