Já vai quase um ano desde que cheguei à Alemanha. Por esta altura já estou habituado ao modo de vida, a linguagem vai ficando cada vez melhor, os hábitos dos alemães já deixaram de ser estranhos para mim. No entanto há ainda uma coisa, uma pequena coisa à qual ainda não me consegui habituar. O conceito da gorjeta.
Como português que sou, não estou habituado a dar gorjeta. Com a excepção dos restaurantes finos, nós quase nunca pagamos mais do que o que vem na conta, e quando o fazemos, é só para dar uns trocos ou arredondar a conta. Se pagarmos com cartão, é quase certo que não iremos deixar gorjeta. Em cafés e bares não nos passaria pela cabeça dar gorjeta ao empregado. E porque o haveríamos de fazer? Nós já estamos a pagar pelo serviço completo. Assumimos que os preços da comida e bebidas que vêm na conta já foram aumentados para ter em conta o serviço. Porque esperariam eles que pagássemos ainda mais que isso?
Bem, as coisas são diferentes aqui. Aparentemente, o serviço não está incluído na conta. Por isso se se sentarem à mesa e alguém vier servi-los, devem dar gorjeta. Devem. É que, o meu problema não é o facto de quererem deixar gorjeta, aí tudo bem, acho bem que o façam se se sentirem extremamente satisfeitos com a comida e o serviço e queiram recompensá-los dessa forma. O problema é que aqui eles esperam que nós deixemos gorjeta em qualquer das situações, e provavelmente levarão a mal se não o fizermos. Os alemães dir-vos-ão as três razões pelas quais devem dar gorgeta aos empregados e empregadas de mesa:
Sabem, eu pessoalmente também protesto contra a matemática. Os alemães têm um sistema, é esperado que se dê de gorjeta o equivalente a 10% da conta. O empregado dir-vos-á quanto é, adicionam 10% a isso, arredondam o resultado para cima e respondem ao empregado dizendo-lhe quanto é que pretendem pagar. Um amigo meu passa quase 10 segundos com as notas na mão a fazer as contas mentalmente para dizer o resultado ao empregado de mesa. Para que é que é isto? Se eles esperam sempre que paguemos 10% a mais que a conta, porque é que não incluem na conta esses 10%? Para mim é tão simples como isso: eles dizem-me quanto é que eu devo pagar, e é isso que eu pago.
Bem, de qualquer forma, é a sociedade deles, as regras deles, e quando vivemos em sociedade não podemos simplesmente inventar as nossas próprias regras e esperar que elas sejam facilmente aceites pelos outros. Ou nos regemos pelas regras deles ou vamos passar um mau bocado. Durante uns tempos saltei grande parte das gorjetas por causa do meu problema com os números alemães (como nunca chegava a perceber ao certo quanto era a conta, quando chegava a parte de eu lhes dizer quanto é que eu queria pagar simplesmente ficava calado e entregava o dinheiro, o que para eles quer dizer que eu não quero dar gorjeta), mas comecei a levar a coisa a sério depois de um primeiro encontro correr terrivelmente mal porque eu não dei gorjeta à empregada. A rapariga do encontro ficou chocada com a minha falta de educação, deu-me um sermão sobre a maneira de se dar gorjeta, não aceitou nenhuma das minhas desculpas e desde então nunca mais falou comigo.
Portanto agora porto-me bem mas estou sempre a pensar se devo dar gorjeta a esta ou àquela pessoa. Por exemplo, devo dar gorjeta à empregada que me traz apenas café? A taxistas? À cabeleireira que me corta o cabelo? E porque é que não dou gorjeta à caixa do supermercado? Ao carteiro por me entregar aquela encomenda que eu tanto esperava? Ao condutor do autocarro por me transportar? À menina da loja que me ajuda a escolher a roupa? Ao senhor do quiosque por me vender o jornal? Ao rapaz que me põe gasolina no carro na estação de serviço? Porque é que dou gorjeta ao empregado de mesa mas não ao cozinheiro? Raios, porque é que eu não recebo uma gorjeta pelo trabalho que faço? Se vamos começar a distribuir gorjetas, por que raio são os empregados de mesa os únicos que as merecem?
P.S.: O título deste artigo é uma referência ao filme Anchorman (em Portugal: "O Repórter: A Lenda de Ron Burgundy"). A meio deste filme aparece um restaurante mexicano, chamado "Escupimos em su alimento" segundo o letreiro. Acho que não preciso de traduzir para português, pois não?
(english version)
Como português que sou, não estou habituado a dar gorjeta. Com a excepção dos restaurantes finos, nós quase nunca pagamos mais do que o que vem na conta, e quando o fazemos, é só para dar uns trocos ou arredondar a conta. Se pagarmos com cartão, é quase certo que não iremos deixar gorjeta. Em cafés e bares não nos passaria pela cabeça dar gorjeta ao empregado. E porque o haveríamos de fazer? Nós já estamos a pagar pelo serviço completo. Assumimos que os preços da comida e bebidas que vêm na conta já foram aumentados para ter em conta o serviço. Porque esperariam eles que pagássemos ainda mais que isso?
Bem, as coisas são diferentes aqui. Aparentemente, o serviço não está incluído na conta. Por isso se se sentarem à mesa e alguém vier servi-los, devem dar gorjeta. Devem. É que, o meu problema não é o facto de quererem deixar gorjeta, aí tudo bem, acho bem que o façam se se sentirem extremamente satisfeitos com a comida e o serviço e queiram recompensá-los dessa forma. O problema é que aqui eles esperam que nós deixemos gorjeta em qualquer das situações, e provavelmente levarão a mal se não o fizermos. Os alemães dir-vos-ão as três razões pelas quais devem dar gorgeta aos empregados e empregadas de mesa:
- Os empregados de mesa ganham apenas o que lhes dão em gorjetas (ou quase) - OK mas, porque é que isso é problema meu? Porque é que eles não podem subir os preços para incluir o serviço, como nós fazemos? Ou então porque é que eles não incluem a gorgeta na conta? (os italianos fazem isto, chamam-lhe o coperto.) Ao fazerem o que fazem, os donos dos bares e restaurantes estão simplesmente a dizer-nos que não é problema deles pagar aos empregados, é nosso. Se nós não dermos gorjeta, eles não recebem, e nós ficamos com a consciência pesada. Além disso, estão também a baixar artificialmente os preços porque acabamos por pagar sempre mais do que o que está na conta (por exemplo, a conta diz 25€ mas acabamos por pagar 28€).
- A gorjeta é uma forma de avaliar o serviço - mas será assim um trabalho tão difícil? É levar comida e bebidas às pessoas! Claro que a grande maioria dos empregados fará um trabalho aceitável. Sim, alguns poderão ter um desempenho excelente e merecer uma gorjeta maior, mas eu não tenho nada contra isso como já referi. Por outro lado, se o serviço foi assim tão terrível, não seria melhor dizer-lhes o que aconteceu ou fazer uma reclamação por escrito em vez de simplesmente ir-se embora sem deixar gorjeta?
- Se nunca derem gorjeta, eles começam a cuspir na vossa comida - ou a fazer qualquer outra coisa desagradável com ela. Esta faz-me logo lembrar os arrumadores de carro em Portugal, que vos furam o pneu do carro se não lhes derem a moedinha. No fundo é uma coisa tipo Mafia, em que têm de lhes pagar para eles vos protegerem deles próprios. E eu tenho de os tratar como mafiosos porque me trazem comida e bebidas?! Está tudo doido?
Sabem, eu pessoalmente também protesto contra a matemática. Os alemães têm um sistema, é esperado que se dê de gorjeta o equivalente a 10% da conta. O empregado dir-vos-á quanto é, adicionam 10% a isso, arredondam o resultado para cima e respondem ao empregado dizendo-lhe quanto é que pretendem pagar. Um amigo meu passa quase 10 segundos com as notas na mão a fazer as contas mentalmente para dizer o resultado ao empregado de mesa. Para que é que é isto? Se eles esperam sempre que paguemos 10% a mais que a conta, porque é que não incluem na conta esses 10%? Para mim é tão simples como isso: eles dizem-me quanto é que eu devo pagar, e é isso que eu pago.
Bem, de qualquer forma, é a sociedade deles, as regras deles, e quando vivemos em sociedade não podemos simplesmente inventar as nossas próprias regras e esperar que elas sejam facilmente aceites pelos outros. Ou nos regemos pelas regras deles ou vamos passar um mau bocado. Durante uns tempos saltei grande parte das gorjetas por causa do meu problema com os números alemães (como nunca chegava a perceber ao certo quanto era a conta, quando chegava a parte de eu lhes dizer quanto é que eu queria pagar simplesmente ficava calado e entregava o dinheiro, o que para eles quer dizer que eu não quero dar gorjeta), mas comecei a levar a coisa a sério depois de um primeiro encontro correr terrivelmente mal porque eu não dei gorjeta à empregada. A rapariga do encontro ficou chocada com a minha falta de educação, deu-me um sermão sobre a maneira de se dar gorjeta, não aceitou nenhuma das minhas desculpas e desde então nunca mais falou comigo.
Portanto agora porto-me bem mas estou sempre a pensar se devo dar gorjeta a esta ou àquela pessoa. Por exemplo, devo dar gorjeta à empregada que me traz apenas café? A taxistas? À cabeleireira que me corta o cabelo? E porque é que não dou gorjeta à caixa do supermercado? Ao carteiro por me entregar aquela encomenda que eu tanto esperava? Ao condutor do autocarro por me transportar? À menina da loja que me ajuda a escolher a roupa? Ao senhor do quiosque por me vender o jornal? Ao rapaz que me põe gasolina no carro na estação de serviço? Porque é que dou gorjeta ao empregado de mesa mas não ao cozinheiro? Raios, porque é que eu não recebo uma gorjeta pelo trabalho que faço? Se vamos começar a distribuir gorjetas, por que raio são os empregados de mesa os únicos que as merecem?
P.S.: O título deste artigo é uma referência ao filme Anchorman (em Portugal: "O Repórter: A Lenda de Ron Burgundy"). A meio deste filme aparece um restaurante mexicano, chamado "Escupimos em su alimento" segundo o letreiro. Acho que não preciso de traduzir para português, pois não?
(english version)