Digam o que disserem, a informatização da função pública foi uma bênção divina para a população em geral. O Sócrates pode ser um vigarista, um incompetente, ou mesmo um vigarista incompetente, mas dessa mente burra e conspurcada saiu a ideia do Simplex, que para muitos é a melhor coisinha que já lhes aconteceu.
A começar pelos próprios funcionários públicos (e aqui advirto que vou usar o estereótipo do funcionário público, admitindo no entanto que nem todos os funcionários públicos são assim - embora você, que é funcionário público e depois de ler este artigo o irá achar escandaloso e atentador do seu orgulho e dos seus direitos como funcionário público, esteja provavelmente inserido neste grupo). Para já a ideia de usar computadores leva logo à conclusão de que será necessário fazer menos, o que é sempre uma mais-valia. Depois, têm que gastar tempo em formações nos referidos computadores e respectivo software, tempo esse que assim não gastam a trabalhar e que no fundo é bem passado porque toda a gente sabe que nas formações não se passa nada. Mas o golpe de génio é que a informática veio dar aos funcionários públicos a melhor desculpa possível para serem mesmo mauzinhos e não ceder numa vírgula aos pedidos extraordinários dos seus clientes (ou contribuintes, ou cidadãos). A desculpa do "o computador não me deixa".
Imaginemos um caso prático. No centro de saúde, um senhor quer passar à frente dos outros porque "só vai pedir umas análises e tem que apanhar um avião ao meio dia". OK, não é grande exemplo, mas ficamos com este. Nos tempos em que não havia computadores, a secretária tinha que lhe dizer que isso não era justo para os outros doentes, que alguns deles também podiam querer só pedir análises (embora soubesse de antemão que nenhum deles queria), enfim, o homem não ia ficar satisfeito, ia haver discussão, a coisa só se resolvia por exaustão ou por cedência da secretária. Mas agora é tudo muito mais fácil para a secretária, basta ela fazer a cara mais inocente do mundo, e dizer "Olhe, se fosse por mim você até passava para a frente, mas o computador não me deixa...". O homem, incrédulo, perguntava "então e não pode fazer nada?" e ela virava o monitor para ele, com a lista de doentes e dizia "Está a ver? Só consigo acrescentar o seu nome aqui em baixo, não dá para o meter no meio. Isto está mesmo feito para não deixar ninguém passar à frente". E o pobre do doente desistia e ia-se embora a praguejar contra os facínoras dos informáticos.
Aliás vê-se nesta expressão como os funcionários públicos vêem a sério o seu trabalho. É curiosa a inclusão do me em "o computador não me deixa", como se o computador tivesse uma aversão especial em relação àquele funcionário, que não o deixasse fazer a operação porque era aquele funcionário e não outro qualquer. Para o funcionário, é como se ele tivesse uma relação pessoal com aquele computador, que às vezes é teimoso e caprichoso e não o deixa fazer o que quer. Para nós, por outro lado, dá vontade de responder "então passe o computador ao seu colega, pode ser que o deixe a ele!".
Devo dizer também que isto não se aplica só a funcionários públicos. Já vi muitos funcionários de empresas privadas a dizer o mesmo. Mas talvez os funcionários públicos (e ressalvo novamente que estou a falar do estereótipo) tenham maior prazer em utilizar a desculpa da teimosia do computador. O que, apesar de tudo, é um mito. Sim, como programador de software de gestão, posso afirmar que a ideia generalizada do "o computador não me deixa" é falsa. Isto porque - e salvo as operações que são mesmo proibidas por lei - para cada operação que suscite a desculpa do "computador não me deixa" há quase sempre, no menu de opções avançadas, uma opção que diz, basicamente, "deixar fazer o que o cliente quer", ou até uma outra forma mais fácil de contornar a coisa. Se ao menos os funcionários estivessem mais atentos nas formações...
Por fim, não quero fechar este artigo sem deixar de referir o estado de evolução da informatização da função pública, que vai no sentido de tornar os próprios funcionários públicos em autómatos. Alguns já começam a conversão, através de outra expressão muita corrente nos dias de hoje, que é a expressão do "tem que tirar a senha":
- Bom dia, eu queria pagar esta factura...
- Primeiro tem que tirar a senha.
- Mas... não está aqui mais ninguém!
- Meu senhor, não o posso atender sem antes tirar a senha.
(vou para tirar a senha, mas entretanto outra pessoa chega e tira a senha primeiro que eu)
PIIII PIIII
- Cinquenta e quatro!
- Olhe, mas eu estava aqui primeiro que este senhor!
- Qual é o número da sua senha?
- É o cinquenta e cinco. Mas...
- Ainda vou no cinquenta e quatro. Tem que aguardar até chamar o seu número.