14 dezembro 2011

"Tchau" e a constante cosmológica

Para aqueles que ainda não sabem, embarquei numa nova viagem. E devo gostar mesmo muito do Inverno, porque depois de ter estendido o meu Inverno passado indo para o Brasil precisamente quando este começava por lá, desta vez resolvi passar o Inverno num clima ainda mais frio. O clima dos alegados "donos" da Europa, o alemão.

A cidade de Frankfurt é até bastante agradável, mas a língua alemã é neste momento a principal barreira para mim, que vim para cá sem saber uma palavra da língua. Não porque não me consiga fazer entender se quiser, porque quase toda a gente fala inglês (e não se importam de o falar, ao contrário do que tenho ouvido em alguns mitos urbanos), mas porque eu tenho sempre a mania de querer fazer-me passar por nativo. Como tal, aproveito cada palavrinha de alemão que apanho para a poder utilizar na próxima oportunidade. O problema é que depois de eu dizer Ein Milchkaffee bitte eles respondem com uma data de coisas que eu não consigo entender, e lá tenho eu de pedir para falarem inglês. Enfim, teimosia minha.

Mas o que é que isto tem a ver com a constante cosmológica? Bem, primeiro tenho de explicar o que isso é. Não querendo entrar em muitos detalhes, mas entrando em alguns, porque não quero que os meus leitores morram burros, a constante cosmológica foi um artefacto criado por Einstein para a sua teoria da relatividade geral, para que esta fosse consistente com um universo estático. No entanto, depois que Edwin Hubble (o que deu o nome ao telescópio) descobriu que o universo estava em permanente expansão, Einstein verificou que não precisava da constante, dizendo mesmo que tinha sido o maior erro da sua carreira. Apesar de tudo, anos mais tarde outros cientistas vieram repescar a constante que afinal sempre era precisa porque o universo expande-se ainda mais depressa do que o previsto. Já chega de ciência por agora, o importante a reter é a definição de constante cosmológica como algo que se criou como certo, mas depois descobriu-se que estava errado, mas depois descobriu-se que afinal estava mesmo certo.

Vem isto a propósito dos meus primeiros dias na cidade, depois de conhecer os meus novos colegas de trabalho e de me habituar a um ambiente de trabalho anglófono (com o qual não tenho grandes problemas), ao fim da tarde um deles foi-se embora, despediu-se de todos com um Goodbye, e eu atiro-lhe com um Tchau! à portuguesa. Mesmo depois de estar o dia todo a falar inglês, aquilo saiu-me assim.

Percebi de repente que tinha dito algo que ninguém percebia ali, e de imediato tentei explicar-me, aproveitando a presença de um colega italiano para dizer que o Tchau português era equivalente ao Ciao italiano, embora só o usássemos na despedida. Eles perceberam, e eu fiquei satisfeito por ter corrigido o erro.

Qual não é o meu espanto quando, no dia seguinte, ouço dois alemães a despedir-se um do outro com Tchau.

E depois vejo os meus colegas alemães a fazer a mesma coisa. Depois de indagar o que se passava, fiquei a saber que, além do mais formal Auf Wiedersehen e do mais popular Tschüß, os alemães também usam Tschau como forma de despedida. Portanto o Tchau que eu tinha dito à portuguesa afinal também estava correcto como palavra alemã! E por isso o Tchau é a minha constante cosmológica.

Bónus: apesar de ter aprendido rapidamente termos como DankeBitte, e o mais recente Kaputt (por exemplo, "o meu cartão não funciona" - meine Karte ist kaputt), andei um pouco traumatizado nos primeiros tempos por não saber dizer "desculpe" em alemão. Só para conseguir pronunciar Entschuldigen Sie demorei mais de uma semana. Até que um dia uma senhora esbarra comigo no eléctrico e diz Pardon, à francesa, que afinal é uma palavra que os alemães também utilizam. Enfim...

(english version)

27 outubro 2011

Organizas???

Também funciona com "Fazes tu?", "Ficas tu com isso?", "Tratas tu disso?" E no momento em que ouves qualquer uma destas simples perguntas, sabes imediatamente que estás tramado. Começas a pensar em tudo o que disseste até então, e perguntas-te vezes sem conta para que é que foste abrir a boca e como é que foste capaz de cair nesta esparrela.

Há um lema que persiste em algumas das boas e prósperas empresas de software. Penso que soará melhor dito em inglês: "if you have an idea, you own that idea". Se tu tens uma ideia, és o dono dessa ideia. Ser o dono da ideia significa, por um lado, assumir toda e qualquer responsabilidade pela implementação da ideia. Na verdade, não há pessoa mais indicada para o fazer que o autor, o idealizador da ideia, por isso é lógico que assim seja. Mas por outro lado, atribuir a posse de uma ideia ao seu autor significa também que é ele que colherá os frutos se a ideia for bem sucedida, o que também é justo.

As referidas empresas fazem isso para poder distinguir as ideias sérias e construtivas das ideias vãs e "atiradas para o ar". E assim que um colaborador dessa empresa percebe isso, ele sabe que tem que ter muito cuidado com as ideias que tem. Não basta dizer simplesmente "tem que se fazer isto", "o que se devia fazer era aquilo" e esperar que outra pessoa o faça, porque a qualquer altura pode ser-se chamado a concretizar a ideia que teve. Se a ideia for sólida, implementá-la-á de bom grado; se for vã e sem sustentação, será forçado a admitir publicamente que afinal, não era uma ideia assim tão boa.

Mas nem sempre nos apercebemos que vamos cair na esparrela. Às vezes estamos a falar só por falar, e só  nos apercebemos que tivemos uma ideia quando levamos com o "Fazes tu?" em cima. Foi o que aconteceu comigo, numa inocente conversa online com uma antiga colega de curso. Começou com os habituais cumprimentos, "Tudo bem?", "Já não te vejo há muito tempo", "Pois, o último jantar de curso já foi há dois anos", "Ah e tal, temos que reunir o pessoal". O curioso da expressão "temos que reunir o pessoal" é que, apesar de parecer, não é ainda bem uma ideia, é uma expressão suficientemente vaga para que ninguém pense em concretizá-la. Diria mesmo que faz parte do cumprimento. É como dizer "tens de vir cá jantar um dia destes", na verdade toda a gente sabe que isso não quer dizer nada.

E eu, prestes a cair que nem um patinho, respondo com "Devíamos fazer um jantar de Natal em Novembro... Dezembro está sempre atolado com outros jantares...". E tumba! ela atira-me com um "Organizas???" para cima. Veio com tanta força que até me atirou ao chão. E enquanto me levanto estou a pensar: "Mas... o que é que aconteceu aqui? Ela, de repente, atribuiu-me a responsabilidade sobre uma ideia!! Pois claro, estava mesmo a pedi-las... quem me mandou falar em jantares de Natal? Mas... foi ela que disse no início que tínhamos de reunir o pessoal!!!"

É claro que, agora que fui desafiado, não vou dar parte de fraco. Não vou arriscar a que me digam mais tarde que só digo as coisas por dizer. A ideia até é uma boa ideia, é sólida, por isso vai para a frente. O Jantar de Natal do curso está marcado. A data é Sábado, 26 de Novembro, sensivelmente daqui a um mês, o local está pensado mas ainda não combinado, e este artigo do meu blog serve de convite para os participantes. Portanto, se são do curso de Engenharia Química, da Universidade de Coimbra, da classe de 1993 - ou é classe de 1998? Isto conta-se pelo primeiro ano ou pelo último? Bem, não interessa: se tiveram que me aturar como colega de curso, estão convidados!

Os convidados receberão mais informações à medida que as coisas se forem planeando. Tanto quanto me lembro é a primeira vez que organizo um evento desta envergadura, mas como disse Otto von Guericke quando descobriu o vácuo, "não há-de ser nada".

(P.S.: e agora aqui para nós que ninguém nos ouve: e agora o que é que eu faço? falo com o restaurante? mando emails com os convites? tenho que saber a ementa? e os preços? como é que eu sei o número certo de pessoas? alguém me dá uma mãozinha?)

12 outubro 2011

Nem ao menos disseste olá?


O que é que é suposto fazermos ao certo quando vemos alguém que conhecemos na rua ou no supermercado, mas a pessoa em questão não nos vê? Dizemos-lhe olá? Ou não lhe dizemos olá? É sem dúvida mais fácil quando simplesmente esbarramos um no outro, ou então vemo-nos ao longe mas ao mesmo tempo. Nessa altura dizemos olá naturalmente, trocamos beijos e abraços, pomos a conversa em dia. Mas quando vemos uma pessoa que não repara em nós, hesitamos. Vamos lá ter com ela e mostramos-lhe que também estamos aqui? Fingimos que não a vemos e tentamos sair sem sermos vistos? A meu ver existem quatro maneiras de resolver este problema, e vou falar sobre elas a seguir.

1. O Olhar Fixo
O Olhar Fixo funciona bem quando está sentado em algum lugar, ou simplesmente não estando em movimento. Não funciona bem em andamento, a não ser que ande na mesma direcção da outra pessoa. Além disso é necessário que esteja pelo menos no seu campo de visão. O método é simples: olhar fixamente para a pessoa que se conhece até ela reparar em si. Pode levar algum tempo para que isso aconteça, e entretanto irá observá-la a olhar em todas as direcções possíveis, todos os ângulos possíveis excepto aquele que aponta directamente para si. E vão haver algumas vezes em que ela não repara em si mesmo estando a olhar directamente na sua direcção. Mas, quando (e se) isso finalmente acontece, poderá então dizer olá de longe, ou então fazer a Ida Até Lá. O Olhar Fixo pode ser um pouco difícil se não estiver concentrado: se usar O Olhar Fixo só de vez em quando arrisca o aparecimento do Duplo Olhar Fixo, em que cada pessoa, à vez, tenta chamar a atenção da outra, mas desvia o olhar no preciso momento em que a outra começa a olhar para ela.

2. A Chamada
A Chamada é a forma mais perigosa das quatro, uma que pode embaraçá-lo irremediavelmente se não a usar correctamente. É melhor se usada perto da outra pessoa e quando O Olhar Fixo não funciona ou não está a funcionar. Na Chamada deve chamar a pessoa pelo seu nome ou de outra forma qualquer. Eu sugiro vivamente que chame a pessoa pelo nome, porque o uso de termos como "Pssssst" ou "Olááááá!" ou "Hei, tu aí!" fará com que toda a gente se vire e olhe para si, excepto a pessoa que está a chamar. E depois, se a pessoa estiver muito longe de si ou houver muito barulho, acabará por chamá-la vezes sem conta, sem qualquer sucesso que não o de alertar toda a gente à sua volta; nesses casos, o melhor é tentar a Ida Até Lá ou a Fuga De Mansinho.

3. A Ida Até Lá
A Ida Até Lá é para ser usada quando tudo o resto falha. É 100% eficaz, mas pode ser um bocadinho complicada porque é necessário ir até onde a pessoa está e chamar-lhe a atenção, ou tocando-lhe ou fazendo A Chamada. Nem sempre é possível ir para junto da outra pessoa, talvez não possa deixar as suas coisas sem ninguém para olhar por elas, ou não possa deixar o seu grupo de amigos. Há poucos dias encontrei um colega meu numa escada rolante, comigo a ir para baixo e ele a ir para cima; se fizesse a Ida Até Lá naquele sítio, seria o caos! Mas se tem oportunidade de ir até junto da pessoa, óptimo! Irá com certeza, definitivamente fazer com que ela repare em si. Mas primeiro deve perguntar-se a si próprio, será que ela merece uma Ida Até Lá?

4. A Fuga De Mansinho
Sim, você pode fazer essa escolha. Pode escolher ignorar e ir-se embora. Mas A Fuga De Mansinho não é apenas sobre ir-se embora. É que agora que decidiu que não se vai mostrar à outra pessoa, vai ter de se assegurar que a outra pessoa não o vê. Mais importante ainda, tem que se assegurar que ela não repare que você reparou nela! Porque se ela o fizer, vai notar também que está a tentar evitá-la. É por isso que é uma Fuga De Mansinho e não uma ida embora. Se conseguir fugir em segurança, A Fuga De Mansinho dar-lhe-á automaticamente uma breve consciência pesada e a incapacidade de contar aos outros quem viu nesse dia, porque se isso chega aos ouvidos da pessoa em questão, ela vai-lhe perguntar porque é que nem ao menos disse olá. Mas não se preocupe, vai correr tudo bem.

Poderá usar qualquer uma destas quatro formas dependendo da situação, mas eu acredito que uma pessoa pode ser definida pela forma que usa mais frequentemente. Diga lá então, que tipo de pessoa é?

(versão inglesa)

26 setembro 2011

Fazem fazem fazem... mas não os vejo a fazer nada

O verbo fazer é um dos mais importantes na vida humana. Aquilo que nos define como indivíduos é o que fazemos: perguntar "o que é que tu fazes?" a uma pessoa com o objectivo de a conhecer é tão natural como beber água. Se alguém pura e simplesmente não faz nada, então é olhada com um misto de pena e decepção (o olhar do "coitadinho") pelo resto da sociedade, ou pelo menos pela parte da sociedade que se preocupa com isso. O stress, essa doença tão moderna, tem origem no simplesmente no facto de se querer (ou ser obrigado a) fazer mais do que é possível. Em suma, andamos todos a fazer alguma coisa.

Porém, talvez devido a essa obsessão com o fazer, acabamos por dizer que fazemos coisas que nunca deviam ser feitas. E aqui, tenho que dizê-lo, desculpem se ferir susceptibilidades mas isto é mesmo assim, a culpa é dos franceses. Boa parte da culpa. Um bocadinho da culpa. Se há duas coisas que os franceses gostam de fazer é de jogar instrumentos musicais (jogar piano, jogar guitarra, jogar saxofone...) e de fazer coisas como atenção e cuidado. Depois claro que os nossos emigrantes trazem os termos para cá, mas a culpa não é deles, se os franceses quisessem "avoir attention" em vez de "faire attention", os emigrantes também não vinham fazer atenção para cá.

É que fazer significa fabricar, construir. E, mais importante que tudo, fazer significa que somos nós que o fazemos, não é outro qualquer. E ter é possuir, é chamar seu a uma determinada coisa. Se eu tenho algo não implica necessariamente que o fiz, posso tê-lo recebido de outra pessoa ou entidade. Ora, o cuidado não se fabrica. Ou se tem ou não se tem. Quem tem cuidado age de acordo com o cuidado que tem. Não perde tempo a fazer cuidado antes de agir.

Segundo ponto em questão: fazer doenças. Aparentemente alguns de nós acham-se narcisistas o suficiente para pensar que são eles próprios que fazem gripes, congestões, pé de atleta, pneumonias, depressões, sei lá, SIDA e mais não sei quê. Depois chegam ao pé de nós e dizem "não andes à chuva que ainda fazes uma constipação!" Esquecem-se que as constipações são feitas por uns bonequinhos pequeninos chamados vírus, são eles que fazem a doença e depois oferecem-nos a dita cuja, passando nós a tê-la. É muito feio tomar crédito de algo que não fomos nós que fizemos, não é?

O que nos leva aonde eu queria chegar no fundo, ao terceiro e mais importante ponto da história: fazer amor. Ou, como eu gosto especialmente de dizer, fazer o amor. Meus amigos, aparentemente o amor faz-se. Fabrica-se. Constrói-se. E perguntam vocês como é que se faz o amor? Tem-se sexo. Ora bem, em Portugal argumenta-se que o sexo também se faz, mas tomo aqui a posição dos nossos amigos anglófonos, com a sua dicotomia make love / have sex. Por isso é que nos filmes americanos eles demoram tanto tempo para dizer "I love you". Porque é assim: primeiro apaixonam-se, mas é só paixão, não há amor ainda. Depois passam uns tempos a fazer amor, fazem, fazem, fazem até terem os dois uma grande pilha de amor para dar e vender. E só depois é que realmente dizem que amam o outro. O problema é que quando um deles diz o temível "I love you" e o outro acha que ainda não o ama o suficiente. É porque o primeiro fez mais amor que o segundo. Provavelmente sozinho.

Mas continuo a não conseguir entender porque é que o amor se faz e o sexo se tem. Bem, podemos argumentar que sexo já o temos mesmo, cada um de nós tem um, a questão é que efectivamente fazemos alguma coisa com eles. Segundo a mesma lógica, se quiséssemos dar a mão podíamos dizer "vamos ter mão" e se quiséssemos beijar-nos podíamos dizer "vamos ter boca". Esta fica sem perceber, quem souber a resposta que responda. Outra pergunta que tem que ser feita é: porque é que duas pessoas que se amam fazem amor. Para quê? Já não fizeram amor suficiente para se amar um ao outro? E depois o que é que fazem ao amor em excesso? É que depois andam por aí impregnados de amor a dar beijos e a fazer avanços em público, e a certa altura ninguém pode estar ao pé deles de tão melados que estão. Fazem amor a mais, e depois não têm onde o meter. Olhem, a melhor solução é varrer para debaixo do tapete, que é como quem diz escondê-lo dentro do útero da mulher, mas depois não se admirem que o tapete venha a ter um alto tal que já não se consegue disfarçar.

16 setembro 2011

E por falar em telenovelas...

- Ah Etelvina, tu tens visto os Perdidos de Amor?
- Ah Zulmira, tenho visto pois! Tu já viste o que aquela Diana anda a fazer à pobre da Patrícia? Agora vai seduzir o António de propósito para ele acabar com ela!
- Ah, essa Diana, é que ela é mesmo má!

Aham! Desculpem, também estava aqui entretido a ouvir a conversa. Portanto, telenovelas. Confesso que não sou a pessoa mais indicada para falar de telenovelas, porque não as vejo há anos, provavelmente há décadas. A última novela que vi deve ter sido, deixa cá ver, O Rei do Gado ou assim. Simplesmente deixei de ter paciência para elas. Gosto de ver séries porque dão só uma vez por semana, agora tentar seguir algo que dá todos os dias e muitas vezes a horas indecentes já não é para mim. Mas é precisamente porque já não vejo novelas que começo a achar um interesse especial nas pessoas que falam de novelas. É a forma apaixonada como as descrevem, como as comentam, como tentam convencer quem está de fora que é a melhor novela que já viram em toda a sua vida. Não é que o consigam, porque para quem está de fora, uma novela continua a parecer uma coisa bizarra. Então mas digam lá, os Perdidos de Amor é sobre quê?

- Olha, é assim, são duas irmãs, a Patrícia e a Diana, a Patrícia é boazinha e a Diana é má, que por sua vez estão casadas com dois irmãos, a Patrícia com o António e a Diana com o Francisco. Só que a Diana gosta é do António e quer roubá-lo à irmã. E o Francisco...
- O Francisco é um panhonhas!
- É um panhonhas ele, não liga nenhuma à mulher, ela anda com os homens que quer e ele não vê nada! Mas olha que ela faz um papelão, hã? E quando ela se atirou para cima do carro só para perder o bebé?
- Faz um papelão, ela!

E aqui está a primeira figura típica de quem fala de novelas, que é a figura do papelão. Normalmente o "papelão" seria para quem é muito bom actor, mas nas novelas quem é que faz sempre o papelão? É a pessoa que faz de má. Aliás, não é bem assim, é a mulher que faz de má. Primeiro, porque os homens não têm jeito para novelas, ninguém lhes liga nenhuma, não se metem em intrigas e maledicências tão bem como o fazem as mulheres. E depois, porque a má da fita é a que faz sempre as cenas mais interessantes, é a personagem menos parecida com as pessoas que vemos no dia-a-dia. A boazinha da fita, que tem de se fazer de sonsa a maior parte das vezes para que a novela dure 150 episódios, não é mais do que uma pessoa comum como todos nós, é a coisa mais fácil de se fazer.

A segunda figura típica é a da personagem cómica, que frequentemente usa um bordão que na novela é repetido vezes suficientes até ter piada. Mas quando se tenta descrever essa personagem a quem nunca viu a novela, é outra história. Quer dizer, toda a gente que via Roque Santeiro ria-se a bandeiras despregadas sempre que Sinhôzinho Malta abanava as pulseiras e dizia "Estou certo ou estou errado?". Mas experimentem contar isso ao vosso filho de dez anos e garanto-vos que, se ele se rir, é porque está a gozar convosco.

- Ah, essa história da personagem cómica faz-me lembrar o Asdrúbal dos Laços dos Anjos. Tu não vês os Laços dos Anjos, Zulmira?
- Ah Etelvina, essa não vejo, não.
- Olha, aquilo é um fartote de rir. Ele faz aquela cara assim meio de parvo que ele tem, e começa a dizer "Não caias em desgraça! Não caias em desgraça!"
- Pois, não sei, essa não costumo ver...
- Ah, mas a expressão que ele faz! Parece que mete a boca mesmo colada ao nariz, e depois "Não caias em desgraça!" Ah! Ah! Ah! Já me estou a rir só de pensar nisso...

Depois temos as telenovelas brasileiras. No tempo em que eu via novelas só havia novelas brasileiras em Portugal. Tudo bem, havia uma portuguesa de vez em quando, mas mesmo assim quando havia era uma entre três ou quatro brasileiras. Agora as telenovelas portuguesas proliferaram e as brasileiras é que são uma minoria. As novelas brasileiras distinguem-se das portuguesas em 3 pontos, 1 - têm um tema diferente e mais específico, usualmente envolvendo uma minoria étnica ou de imigrantes (os indianos, os italianos, os ciganos, os japoneses, etc. etc.), 2 - esbanjam criatividade nos nomes das personagens, fazendo com que o telespectador assíduo passe a dizer coisas como "a Cleusa finalmente vai casar com o Sinval", e 3 - dão à novela um título típico, por vezes com termos derivados do Tupi à mistura que nós portugueses simplesmente aceitamos que nunca vamos entender. O que é mesmo interessante é ver as pessoas falar saudosamente do tempo em que as novelas brasileiras eram rainhas...

- Pois, Etelvina, a essa hora eu vejo a Suruticuti. As novelas portuguesas também são boas...
- São diferentes.
- Pois, são diferentes, mas a mim ninguém me tira as brasileiras. Eles gritam mais, falam alto e bom som, não estão cá com meias medidas. Parece que têm mais vida! Estes daqui são sempre a mesma coisa, meios calados, sempre com as mesmas histórias.
- Ah Zulmira, tu viste como é que ficou a história da Juliaci com o Dorival?
- Vi pois! Então ela ia para o beijar pela primeira vez, mas nisto aparece o Jefferson e o Nicholas todos esbaforidos a dizer que a Dafne tinha tido um acidente, que era tudo mentira, ela tinha fingido tudo só para ficar com o Dorival. Depois o Dorival foi a correr ter com a Dafne ao hospital, já lá estava o Agnello, e ela pediu para ficar com ele de maneiras que ele não voltou a ver a Juliaci. Mas agora ela disse à Lucineide para mandar um recado pelo Jarbas para eles se encontrarem outra vez. E ficou assim para hoje.

... o que me leva à terceira figura típica das novelas, a criada e o mordomo (sempre com os respectivos nomes típicos, obviamente). A sério, quem é que ainda tem criada e mordomo hoje em dia? Eu não conheço ninguém que tenha. Ainda por cima aparecem sempre vestidos a rigor, como mordomo e criada franceses, o último dos quais servirá na realidade mais para fantasias sexuais do que propriamente para limpar a casa...

Por último, e uma vez que há em média uma dúzia de novelas a passar todos os dias na televisão pública, o que as pessoas que falam de novelas gostam mais de dizer é que vêem poucas novelas. Então, não querem perguntar à Etelvina e à Zulmira quantas novelas vêem?

- Ó rapaz, tu pensas que eu faço vida de ver novelas ou quê? Só vejo três, vejo os Perdidos de Amor, vejo os Laços dos Anjos e vejo a Selvagem Indomada à hora de almoço. E só espreito o Suruticuti de vez em quando.
- Ah, eu vejo os Perdidos de Amor, o Suruticuti e a Selvagem Indomada que também é muito bonita, e vejo o Amor de Paixão à tarde. Então, que remédio, é o que está a dar...

23 agosto 2011

Pois claro que estás!

Acham que isto é uma maneira parva de atender o telefone?


Na verdade, se estivessem cá os Castigadores da Parvoíce, metade de Portugal era dizimada. Eu incluído. Tudo isto por causa dessa mania irritante de, ao atender o telefone, perguntarmos ao outro se estamos.

Se não perceberam já lá vamos. Um pouco de história, primeiro. A expressão mais correcta, em termos convencionais, a usar para atender o telefone é efectivamente "Alô". Vem do inglês "Hello", antigamente "Hallo", foi o próprio Thomas Edison que a sugeriu como saudação ao atender o telefone, e quer dizer, literalmente, "Olá". Dizer "Olá" é uma óptima forma de atender o telefone, não acham? Para os mais distraídos, não é a Thomas Edison que se atribui a invenção do telefone, é a Alexander Graham Bell, só que este sugeriu que se dissesse "Ahoy hoy!" Felizmente, nessa altura, os Castigadores da Parvoíce estavam lá.

Grande parte dos brasileiros dizem "alô". Alguns, dependendo do sotaque, acabam por dizer "alôe". E se for a Vera a ligar, dizem "alôe Vera". (ok, foi a piada possível, foi seca como o deserto do Sahara mas tinha que ser). E se a memória não me engana, houve um tempo em que também os portugueses atendiam o telefone com "alô". Eu tenho uma vaga ideia de o ter feito nos meus tempos de miúdo.

E depois Portugal inteiro começou a mudar, primeiro de "Alô" para "Está lá?" ou "Está?", e depois de "Está lá?" para "Estou sim?", "Estou?" e finalmente "Tou?". Neste momento, "Tou?" é provavelmente a forma de atender o telefone mais usada em Portugal.

Eu fui acompanhando todas as mudanças e, confesso, sempre as aceitei com naturalidade, nunca pensei em questioná-las, sempre as achei uma forma válida de atender o telefone como todas as outras. Afinal, se toda a gente diz, não deve estar mal de todo, não é? Até que uma amiga brasileira me viu a atender o telefone e disse "Que é essa merda de estou? Isso quer dizer o quê? Não sabe dizer alô?" E nessa altura tive uma epifania. Nessa altura percebi tudo. "Ééé pááá, esta maneira de atender o telefone é muita parva..."

É que já o "Está lá?" era parvo o suficiente. Quer dizer, se a pessoa atende o telefone, é claro que está lá! Onde é que havia de estar? Se estivesse cá, não era preciso telefonar! A minha teoria é que o "Estou, sim" era uma resposta ao "Está lá?", que no fundo era uma pergunta na categoria das perguntas que têm sempre a mesma resposta. A certa altura as pessoas começaram a dizer "Estou sim" logo ao atenderem o telefone, antes que tivessem de ouvir o "Está lá?" do outro lado que já começava a ser irritante. Digamos que era uma resposta preventiva. Por isso o "Estou sim", ou o "Estou", ditos em tom de afirmação, até fazem sentido. Como quem atende o telefone e diz "Estou aqui, fala comigo". De qualquer forma, não deixa de ser um pleonasmo, já que se eu vou atender o telefone é porque estou! Onde é que havia de estar?

Mas o meu problema com o "Estou" não é bem esse, é a entoação que é dada à palavra, que acaba por converter uma afirmação numa pergunta. Olhem bem para vocês da próxima vez que atenderem o telefone e digam-me se estão a dizer que estão ou a perguntar se estão. "Estou?", "Tou?" e "Estou sim?", ditos em tons de pergunta, há que dar a mão à palmatória, são parvos até dizer chega. Imagino-me a telefonar a alguém e responderem-me com "Estou?". Estão a perguntar-me a mim se estão? Como é que querem que eu saiba? Eles não sabem se estão? Ainda pior é perguntarem se "estão sim". "Estou sim?" "Não, estás talvez."

Será que há assim tantos portugueses com crise de identidade? Que não sabem onde estão, se estão ou se não estão, se estão sim ou se estão não? Pelo andar da carruagem, pela evolução que passou do "Está lá" para o "Estou, sim", não há-de tardar muito até que comecemos a atender o telefone a gritar "Pois claro que estás!".

Portanto, neste ponto tenho que admitir que os brasileiros levaram a sua avante. Mas os brasileiros não se ficam a rir, não. Que é que é isso de dizer "Pronto!" a atender o telefone? Pronto para quê, para sair? Do tipo, já se vestiram e puseram a maquilhagem? Eles calavam-se mas é caladinhos, se soubessem que em Portugal Pronto também é o nome de um produto para limpar o pó. Ah pois é!

09 agosto 2011

A Crônica do Beijinho

Calma, calma, suas mentes perversas e sedentas de tudo o que tenha minimamente a ver com sexo. Esta não é uma crônica do beijo, do beijo fogoso, quente, apaixonado. É uma crônica do beijinho, do beijinho de amigo, do beijinho de cumprimento. Porque é que é crônica? Não sei, podia ser a História do Beijinho, ou o Dilema do Beijinho. Crônica não é bem história mas soa melhor, e além disso Crônica rima com a Turma da Mônica.

Repararam que ainda escrevo com sotaque brasileiro? Pois é, minha gente. Já voltei do Brasil faz dois meses, mas há uma coisa que não consegui tirar da ideia quando lá estive, que não consigo tirar da ideia desde que voltei: afinal, no Brasil devo cumprimentar as mulheres com um beijinho ou com dois?

Em Portugal é fácil. Todo mundo se cumprimenta com dois beijinhos, exceto as tias de Lisboa (e arredores), para quem um beijinho só é que é fino, e dois é "pessidonice" (é brega, pronto). Na Rússia e na Suíca são três; em França são quatro (aí, beijoqueiros!). Em Nova Iorque dão apenas um beijinho, embora mesmo assim algumas pessoas não gostem muito. Na Suécia não tem beijinho nenhum, eles dão uma espécie de "meio abraço".

E no Brasil? Nunca entendi. Umas vezes dei um, outras vezes dei dois. Fiquei pensando se seria comum darem dois beijinhos de vez em quando, ou se me davam dois beijinhos a mim porque eu era português. Também não dá pra entender muito bem porque o gesto de dar beijinho de cumprimento é quase automático. É uma questão de milésimos de segundos, se de repente você se inclina para me dar um beijinho na outra face, eu vou perceber e vou instintivamente fazer o mesmo. Mesmo que minha intenção inicial fosse de me afastar depois do primeiro beijinho.

Quanto a mim, um beijo só é coisa que não faz sentido. O ser humano tem duas faces, porque é que só uma pode levar beijinho? Porque é que uma face tem que ficar rindo e outra chorando? Tem que dar beijinho nas duas, pô! É o princípio da igualdade!

Até no mundo virtual os portugueses se cumprimentam de forma diferente dos brasileiros. Português se despede de seus amigos virtuais mandando beijinhos (bâijinhush). Pequeninos, mais muitos. A não ser quando envia "beijinhos grandes". Aí se ferrou. Que é que é um beijinho grande? Afinal é grande, ou é pequeno? Será o mesmo que um beijão pequeno? Ou é o contrário?

Brasileiro, pelo contrário, é mais maduro, mais adulto. Não tem essa coisa de beijinho não, brasileiro manda beijo (bêjo) mesmo. E não manda beijos, manda Um Beijo, só um, que brasileiro não é brega não. Beijos no Brasil são poucos mas poderosos, um só dá pra sustentar você até o dia seguinte.

Portanto é isso aí, meus irmãos do Brasil. Me ajudem a resolver essa dúvida. Vocês dão um beijinho ou dois? Olhem que a outra face também merece!

Apideite: com a ajuda de alguns amigos brasileiros lá consegui descobri quantos beijinhos se dão no Brasil. E a resposta é: depende do estado! No estado de São Paulo é um, no do Rio de Janeiro são dois, e no fabuloso estado de Minas Gerais dão três beijinhos, três! Êta estado beijoqueiro!!!

(Nota: Apideite não é uma palavra a sério. Não, nem no Brasil)

02 agosto 2011

Etiqueta e boas maneiras

Diria Paula Bobone (e se calhar até disse mesmo) que a boa educação é o que nos distingue dos animais selvagens. E com toda a razão. A boa educação nunca fez mal a ninguém. Veja-se, a título de exemplo, os famosos duelos entre nobres do século XVII: "Com sua licença, desafio-o para um duelo até à morte!". Assim sim, dava gosto ver assassinar pessoas. Assassino sim, mas com educação. Esquecem-se os apologistas da boa educação que devia preocupar-se mais com ela quem educa e não quem é educado, mas isso é história para outro artigo. Para já, queremos dizer que temos etiqueta e boas maneiras, e por isso não somos nenhuns trogloditas.

Mas agora que começamos a entrar no verdadeiro século XXI (porque os primeiros dez anos foram apenas para nos ambientarmos), os antigos manuais de boas maneiras começam a ficar obsoletos. Convenhamos que frases como "Nunca permita que manteiga, sopa ou qualquer outra comida permaneça nos seus bigodes" já não se usam porque hoje em dia ninguém tem bigode. E como hoje em dia há até altos responsáveis do governo português que se escusam a usar gravata, penso que é uma boa oportunidade para revolucionar o conceito de boa educação e prepará-la para este século.

Deixo-vos por isso alguns conselhos práticos de boas maneiras. Com o tempo, este artigo irá sendo acrescentado de forma a se tornar um manual completo de etiqueta para o século XXI. Aqui vão algumas sugestões:

1 - Quando alguém se apresentar a si dizendo o seu nome, responda "Muito prazer". Esta resposta, além de educada, dá-lhe, mesmo que por alguns segundos, o perverso prazer de já saber o nome dessa pessoa sem que ela saiba o seu. Os interlocutores mais atrevidos, depois de um visível embaraço, perguntar-lhe-ão de imediato o seu nome, pergunta à qual terá de responder honestamente. Os mais tímidos, porém, optarão pelo silêncio e ficarão o resto da noite à coca a ver se alguém o chama pelo nome.

2 - Tente espirrar uma segunda vez depois da outra pessoa dizer "santinho". Este é um teste à boa educação do seu interlocutor. Se ele for realmente bem educado, dirá "santinho" também da segunda vez. Se conseguir ter múltiplos espirros, então torna-se um jogo de forças, a ver quem desiste primeiro. Se o seu interlocutor não disser "santinho" uma vez por cada espirro seu, não precisa de lhe dizer "obrigado".

3 - Ao receber alguém em sua casa, peça desculpa pela desarrumação apenas se a casa estiver IMPECÁVEL. As suas visitas ficarão impressionadíssimas e andarão o resto da noite a inspeccionar a casa para tentar perceber ao certo qual será a parte da mesma que está desarrumada.

4 - À mesa, diga "Bom apetite" apenas quando todos os outros já começaram a comer. Isto provocará um enorme peso na consciência dos seus comensais, que finalmente se lembrarão que se atiraram à comida que nem uns alarves e não esperaram por ninguém para o fazer. Com alguma sorte, um deles engasgar-se-á com a comida e um outro otário que não conhece a manobra de Heimlich irá bater-lhe com toda a força nas costas.

5 - Avise os outros que vai começar a comer com as mãos. Esta regra é simples. Sejam costeletas de porco ou bacalhau com natas, comer com as mãos é sempre permitido desde que se avise antecipadamente. Pode dizê-lo de várias maneiras, desde a simples e directa "É só para avisar que vou comer isto com as mãos", passando pela subtil "Pessoal, isto é frango, tem que se comer com as mãos, não é?" e até à rija e máscula "É pá, eu como sempre isto com as mãos. É à portuguesa!". Outra nota importante: não é de bom tom aproveitar-se de outra pessoa o ter anunciado primeiro para começar a comer com as mãos também: todos os que pretendem comer com as mãos devem dizê-lo bem alto para toda a mesa ouvir.

6 - Empanturre sempre as suas visitas e diga-lhes que é para não "fazerem cerimónia". A ironia desta singela frase é que é precisamente para fazer cerimónia que as suas visitas vão acabar por comer mais do que pretendiam. Lembre-se que deve sempre pôr-lhes mais comida no prato e mais vinho no copo sem elas pedirem (e até, se possível, sem elas verem), e principalmente, não os deixe voltar a colocar a comida na travessa, porque "parece mal". Ao terminar a refeição, faça desaparecer todos os pedaços de carne da travessa menos um, e obrigue a visita a comê-lo, "para não se estragar". Como cereja no topo do bolo (que aliás também convém que a visita coma), diga-lhe no final para "não ir lá para fora dizer que foi daqui cheia de fome".

14 maio 2011

A bicha de meia e outras histórias

Falar com sotaque brasileiro é quase como falar estrangeiro. Primeiro porque não posso deixar de notar que falo de forma diferente daquela a que eu estou habituado. Segundo porque, como o bom emigrante português que se preze, dentro de casa se fala português de Portugal. Terceiro porque frequentemente dou por mim interrompendo uma conversa em português do Brasil para falar com meu colega português em português de Portugal, só porque "é mais fácil" falar assim. A única diferença entre o português do Brasil e uma língua estrangeira é que os brasileiros entendem português!

Ué, então porquê falar com sotaque do Brasil? Essencialmente por duas razões: para não dar nas vistas falando com um sotaque estranho, e para facilitar a comunicação com os nativos, afinal os brasileiros não cresceram vendo novelas portuguesas, né? Mas não é tão fácil assim como parece. Por melhor que seja o meu sotaque brasileiro, nunca é perfeito, e acabo sempre metendo os pés pelas mãos. Aliás, acabei de fazê-lo novamente, porque brasileiro não diz meter, diz colocar. Tem algumas expressões de cá que não dá para descobrir à primeira, e tem ainda mais expressões de Portugal que não se usam por aqui, e quando as digo lanço logo um sinal de alerta sobre mim que diz "este cara não é daqui!!"

Tudo isto para introduzir a minha história inventada de hoje: ia eu no supermercado, para comprar mamão, mandioquinha, umas carambolas, alguns caquis, duas bistecas, um pouco de contra-filé e um bolo de fubá, quando me lembrei de parar no caixa automático para sacar dinheiro. Então eu chego no caixa, e o que é que eu encontro bem na minha frente? Uma bicha de meia! E eu disse "nossa, gente, o que é que é isso?" e fui-me embora.

Falando de expressões de cá que não são de lá e vice-versa, uma das primeiras coisas que me perguntaram aqui no Brasil foi se em Portugal bicha queria dizer fila. Acho que já estava contando que me fizessem essa pergunta, só não pensei que fosse tão rápido. Tive que lhe dizer que sim, bicha também queria dizer fila, mas já ninguém em Portugal diz bicha ultimamente. Dizem fila, tal como no Brasil. E a culpa é de quem? Dos brasileiros, que um belo dia se lembraram de inventar que bicha queria dizer gay (como se já não existisse viado, boiola, baitola, xibungo para dizer a mesma coisa). Tendo o termo passado para Portugal através das novelas brasileiras, de repente já não se podia dizer "põe-te na bicha" sem ser recebido com risinhos e gozação. E então os portugueses deixaram de dizer bicha, e passaram a dizer fila, que aliás sempre existiu.

Por outro lado, acho um piadão quando aqui dizem "meia" em vez de "seis". Oito cinco meia sete, dois meia sete oito. Quem não se lembra do "dois três quatro cinco meia sete oito, está na hora de molhar o biscoito" de Gabriel o Pensador? Cheguei a perguntar a uma brasileira se não ficava confundida quando perguntava as horas para alguém e lhe diziam que eram onze e meia. Como assim, onze e meia? Onze e meia é onze e trinta ou é onze e seis? Então e se fosse meia e meia? Para cortar o meu barato, ela me disse que não se usa "meia" em vez de "seis" para dizer as horas, só se for em números de telefone, ou para soletrar um número comprido para alguém. E porquê se diz meia? Porque seis se confunde com três, que os brasileiros dizem "trêis" (os portugueses dizem "trés", por isso aí não há confusão). Então se há confusão, porque não substituir o três em vez do seis? Bem, você é chato, não? Porque seis sempre é meia dúzia, e três é... bem, três não é nada.

Portanto, para quem tinha dúvidas sobre minha historinha, aquilo que eu vi no caixa automático do supermercado não era um homossexual vestindo collants. Era simplesmente uma fila de seis pessoas. Claro que eu não ia ficar esperando por todos eles e perdendo o meu tempo!

Mas como bicha é português e meia é brasileiro, e como bicha já não se usa e meia só se usa para números de telefone, é claro que a história só podia ser inventada.

23 abril 2011

O mistério da ressurreição de Cristo ou como na Galileia não sabiam fazer contas

Só porque é Páscoa e todas as Páscoas me lembro disto, e porque já começa a ser um pouquinho irritante.

Tudo porque há dois mil anos que dizem que Jesus, o Cristo (Cristo que não é nome próprio, quer dizer O Crismado, ou O Untado), ressuscitou no terceiro dia depois de morrer. E porque há dois mil anos se celebra a morte de Cristo a uma sexta-feira e sua ressurreição a um domingo. Hein?!!!

De sexta a sábado é um dia, de sábado a domingo é mais um dia. Um dia mais um dia são dois dias. Onde está o terceiro dia? Afinal Jesus ressuscitou numa segunda-feira? (coitado...)

Estou contando mal, dizem vocês. Sexta-feira é o primeiro dia, sábado é o segundo dia, e domingo é o terceiro dia. Espera, mas no dia em que ele morre já passou um dia desde que ele morreu? Até fazia sentido se ele tivesse morrido logo na meia-noite de sexta, e ressuscitado às 23:59:59 de domingo. Aí fazia três dias completos. Mas a hora oficial da morte (segundo vi por aí) é às três da tarde. Portanto o primeiro dia já começou e ele ainda não tinha nem morrido?

- Meus apóstolos, esta é nossa última ceia, e está quase chegando a meia-noite. Saibam que morrerei na cruz amanhã e ressuscitarei no terceiro dia.
- Terceiro dia a contar desde a sua morte, Senhor?
- Não, Judas! Cala a boca! Terceiro dia a partir de... agora!
- Que bom, Senhor, assim calha no domingo!
- Cala a boca Judas!!! Quem chamou este cara para ser apóstolo? Puxa vida, que cara mais chato!

OK. Pensando bem, quando eu entro para a escola vou diretamente para o primeiro ano, quando entro para o terceiro ano só completei dois anos... é possível que Jesus tenha morrido só durante dois dias e mesmo assim ressuscitado no terceiro...

Mas! De todos os documentos possíveis é a própria Bíblia que me vem dar razão. Não vou transcrever a passagem completa mas deve ser de Mateus x, versículo y. Diz que Jesus disse a não-sei-quem que sua morte demoraria três dias e três noites, e depois então ressuscitaria. Ahá! Três noites! De sexta a domingo não são três noites, são duas noites! Tenho razão ou não tenho, porra!

Portanto, ou na Galileia diziam que um mais um é igual a três, ou o verdadeiro mistério da ressureição de Cristo é saber como ele sumiu com um dia inteirinho de sua morte.

09 abril 2011

Graças a Deus, né?

Pois de repente, sem mais quê nem para quê, fui parar ao outro hemisfério da Terra. Estando já há duas semanas no Brasil, algumas coisas já começam a parecer familiares, mas outras continuam a surpreender-me. Coisas curiosas que dão matéria para mais uma carrada de artigos.

Hoje vou começar por uma das primeiras impressões que tive aqui, mas antes quero avisar-vos que o texto a seguir terá de ser escrito em português do Brasil (ainda que macarrónico). É que, já que vou "gozar" com eles, convém que me sinta parte do grupo, assim parece menos ofensivo para os meus camaradas brasileiros. É uma técnica que foi usada pela primeira vez por Tim Whatley, o dentista do Seinfeld que se converteu ao judaísmo para poder contar piadas sobre judeus.

Aí. Ainda que já esteja no Brasil faz duas semanas, ainda não tive oportunidade de conhecer muita gente. No entanto, logo que cheguei encontrei uma entidade familiar. Encontrei Deus. Não, não fiquei religioso de repente, simplesmente vim parar num sítio que tem tanta igreja por quilómetro quadrado que não dá para sair na rua sem dar de caras com Ele.

Dizem que Deus está em toda a parte, mas eu acho que não é verdade. Com toda a gente que chama e grita por Ele aqui em São Paulo, acho que Ele não tem tempo para ir a mais lado nenhum. É verdade, minha gente, Deus está todo concentrado aqui. Sempre que Ele tenta dar uma perninha lá para o hemisfério norte, tem mais alguém que chama gritando por ele aqui e Ele já não pode ir. No início Ele até ficava estressado por não poder chegar a todo o lado, mas penso que agora já se acostumou.

Aqui em São Paulo sim, Deus está em toda a parte. No caminho de casa contei 16, sim, dezesseis igrejas todas na mesma rua, algumas delas seguidas, parede com parede. Algumas são bem pequenininhas, outras, como a Igreja Universal do Reino de Deus, têm pavilhões enormes e centenas de pessoas entrando e saindo. Tem a Igreja Evangélica Comunidade Aliança em Cristo, a Igreja Metodista Wesleyana e a Igreja Mundial do Poder de Deus, essa última convenientemente fazendo lembrar a mais poderosa Igreja Universal. Tem até um centro automotivo (oficina de automóveis?) chamado "Deus é Fiel"!

Aqui no Brasil não precisa ir à Igreja para ouvir a Palavra do Senhor. Eles cantam e falam tão alto que nós ouvimos aqui, do outro lado da rua e duas casas acima. As igrejas de Portugal, por comparação, são uma pasmaceira. Lá no hemisfério norte, na Igreja Matriz de Lavos, a Eucaristia seria celebrada assim:

E Jesus tomou o pão, partiu-o e deu-o aos seus discípulos dizendo: "Tomai e comei todos: isto é o meu corpo entregue por vós"

Aqui, na Igreja Evangélica Pentecostal "Deus Vai Agir", é mais provável que ela seja celebrada assim:

E AÍ ESTÁ JESUS! JESUS É GRANDE! VEJAM SÓ O QUE JESUS FAZ! ELE TOMA O PÃO, ELE PARTE O PÃO, OLHA O MILAGRE AQUI, ELE PARTE O PÃO E DÁ O PÃO A SEUS DISCÍPULOS. JESUS FAZ O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DOS PÃES! ELE PARTE O PÃO E O MULTIPLICA, SOBRA PARA TODOS OS SEUS DISCÍPULOS! É MILAGRE, MINHA GENTE! E DEPOIS JESUS DIZ, VEJAM O QUE DIZ JESUS NOSSO SENHOR, ELE DIZ "TOMAI E COMEI TODOS: ISTO É MEU CORPO ENTREGUE POR VÓS"!

Talvez não seja bem assim que eles dizem, mas é assim que eu ouço daqui de fora. Pelo menos, apesar de toda a violência, acho que estou bem protegido. Deus não vai sair daqui tão cedo. Graças a Deus, né?


15 fevereiro 2011

Posso fazer uma pergunta? Posso?

Outra coisa que é particularmente irritante é quando alguém chega ao pé de nós e diz "Posso fazer-lhe uma pergunta?". Aliás, há várias correntes deste tipo de pergunta: "Pode fazer-me um favor?", "Pode tirar-me uma dúvida?", "Posso colocar-lhe uma questão?", "Pode dar-me uma informação?"

Há que esclarecer que há também duas versões desta questão, uma menos irritante e outra mais irritante. A menos irritante é quando dizem "Posso fazer-lhe uma pergunta?" e fazem a pergunta logo a seguir, portanto a primeira é assim uma espécie de introdução para a segunda. Mas irrita mais quando dizem "Posso fazer-lhe uma pergunta?" e ficam à espera que eu responda para me fazerem a pergunta!

Obviamente que tudo se passa no campo da boa educação e não é suposto irritar só por ser educado. Mas quando ouvimos isto vezes sem conta, e dito pelas mesmas pessoas, começa a irritar um bocadinho. Eu pessoalmente sou uma pessoa mais prática, se me fazem uma pergunta eu gosto de responder o mais rapidamente possível, mas para isso tenho que saber o que me estão a perguntar! Para dar um exemplo, um dia uma mulher abordou-me na rua e fez-me esta pergunta:

- Olhe, faz-me um favor? O senhor é capaz de dar-me uma informação? O senhor sabe-me dizer onde fica o grpgdfglt?

(naturalmente, eu, que tenho um problema de audição selectiva, acabei por não perceber o fim da frase, que era o mais importante e lá tive de pedir à senhora para repetir. Felizmente, não repetiu tudo desde o início).

Notem que em nenhuma das perguntas que fez ela perguntou o que queria realmente saber. As respostas podiam ter sido simplesmente "Faço", "Sou" e "Sei", e a mulher ficava na mesma. E a questão é precisamente essa: quando alguém pergunta "Posso fazer-lhe uma pergunta?", o que é que suposto respondermos?

Eu diria que em quase 100% dos casos temos que responder que sim. Alguma vez responderíamos "não"? Se por acaso respondêssemos "não" acontecia uma de três coisas:
  1. Diziam "Ah ah ah, brincalhão" e faziam a pergunta na mesma;
  2. Perguntavam "tem a certeza?", diziam "olhe que preciso mesmo de saber", e insistiam, insistiam até eu finalmente dizer que sim;
  3. Diziam "Pronto, está bem... idiota..." e iam-se embora amuados e a pensar que eu era um antipático e mal-educado.
Se eles sabem que eu tenho de responder que sim, porque é que perguntam se podem perguntar? Porque é que não perguntam logo aquilo que precisam de saber? Têm medo de mim, que lhes rosne que não quero responder a pergunta nenhuma ou que lhes diga que estão a fazer perguntas idiotas? Mas claro que só vou saber se a pergunta é idiota depois de a fazerem. Acham que estou muito ocupado e não me querem desconcentrar? Helloooo! É tarde demais, com o "Posso fazer-lhe uma pergunta?" já fiquei completamente desconcentrado!

Na verdade há uma razão para este tipo de perguntas que me assusta mais do que me irrita. Às vezes perguntam-me se me podem perguntar porque a pergunta propriamente dita é muito elaborada. Quando eu sei que é um "Posso fazer-lhe uma pergunta?" deste tipo, até tremo dos pés à cabeça.

- Posso fazer-lhe uma pergunta?
- Podes, diz lá.
- Ora bom. Em 1987, eu e duas ucranianas estávamos numas termas e blah... blah... blah... depois blah... blah... portanto achas que devemos vender as 7 caixas ou vender só 5?

Enfim. De tanto responder "Sim", "Podes", "Força", "Diz lá", "Ya...", começo a pensar em respostas parvas para dar. Respostas como:

- Podes, mas é só uma.
- Vá lá, está bem, desta vez passa.
- É pá, vou ter de pensar no teu caso...
- Porquê?
- Não sei, pergunta à Gertrudes que ela deve saber.
- Não sei se podes, vou ter de confirmar com o meu supervisor.
- Poder podes, eu é que não sei se te vou responder...
- Podias, mas já fizeste, agora olha...

Portanto, o que eu quero dizer com isto é o seguinte: não percam tempo a perguntar se podem perguntar! Perguntem logo!

Em tempos inventei o pedido de licença mais educado e mais complicado de sempre. Era assim: "Olhe desculpe, não se importa, por obséquio, de me fazer o favor de me dar licença para eu passar?".

Podiam dizer isto. Ou então podem dizer "Com licença". É a mesma coisa, e evita prolegómenos como este:


Bónus. "Com licença"? "Com licença" quer dizer que se tem uma licença, não é? Então porque é que é equivalente a "Dá-me licença"? Se é "dá-me licença" está a pedir licença porque não a tem, mas se é "com licença" é porque já tem a licença... Também dá direito a respostas parvas, como "Onde é que está a licença?", "Deixe cá ver" e "Para ligeiros ou pesados?".

25 janeiro 2011

Nós somos os microondas que fazem "plim"

Normalmente gosto muito dos avanços na tecnologia, mas devo dizer que às vezes ela atrapalha mais do que ajuda. Na era do digital, as pessoas querem à força enfiar o digital em tudo o que podem. Devem achar mais moderno, mais vanguardista. Não se apercebem, no entanto, que é também menos prático.

Um dos exemplos é a substituição dos botões de rodar por botões de premir. No meu microondas, que é old-school, tenho dois botões de rodar, um para seleccionar a potência e outro para seleccionar o tempo. O botão do tempo vai rodando para trás à medida que este se esgota, para eu ter uma ideia do que tempo que falta. Simples.

Nos microondas de agora os dois botões de rodar foram substituídos por cerca de dezasseis botões de premir e um display electrónico. Peguem num microondas desses e ponham-no a trabalhar, não importa o tempo. Vá, ponham lá! Ah, têm de perceber primeiro qual é o botão de ligar, de entre os dezasseis botões que o microondas têm. Deve ser o botão com uma bola e um risco ao alto... ah, não, afinal é o que tem um triângulo invertido. Ah, e agora diz que não funciona porque esqueceram-se de digitar o tempo. Simples? Não me parece. Alguns destes microondas até têm um botão para abrir a porta! A sério?!! Uma simples pega na referida porta não era suficiente?

Mas o exemplo de que quero mesmo falar é o som que os microondas fazem. O microondas clássico tem uma pequena campainha que faz "plim" (ou "ding" em inglês - é engraçado como até as onomatopeias têm que ser traduzidas) quando o tempo acaba. E é assim que deve ser: "tchaaaaaaaaaaaaannnnnnnnn... plim!"

Mas os novos microondas da era digital acabaram com essa coisa retrógada que era a campainha e substituíram-na por, ideia das ideias! um besouro digital. Resultado: "tchaaaaaaaaaaaaannnnnnnnn... pi pi pi!". Pi pi pi?!! Mas o que é isto?

Sem ofensa aos homossexuais, mas "pi pi pi" parece-me um bocado amaricado... E não faz sentido nenhum. Um microondas que se preze tem que fazer "plim", é o "plim" que define a sua identidade. As histórias que se contam de coisas terríveis e até macabras acabam sempre com um "plim". "Pi pi pi" é o que faz qualquer aparelho electrónico hoje em dia, porque é que não podemos distinguir o microondas ao menos por isso?

Mas os fabulosos engenheiros do microondas digital foram ainda mais longe e adicionaram um "pi pi pi" ininterrupto, que NÃO SE CALA enquanto não for lá alguém abrir a porta. E isto é verdadeiramente irritante. O que é que tinham na cabeça? É assim tão urgente que se tenha de ir abrir a porta do microondas, quando este está parado? Será assim tão grave que alguém se esqueça da comida quente? A meu ver deviam apitar insistentemente em caso de avaria, ou de sobreaquecimento da comida, não quando o processo terminou e já está tudo bem!

Um microondas que deixa de fazer "plim" para passar a fazer "pi pi pi" é como Os Cavaleiros Que Dizem "Ni" de repente deixarem de dizer "Ni" e passarem a dizer "Ekke Ekke Ekke Ptang Zoo Boing"! Não é a mesma coisa, pois não?