18 fevereiro 2010

Nha nha nha nha (ou como a voz de falsete pode influenciar uma história)

A voz de falsete. Desde sempre que convivemos com ela. Aliás, é uma das primeiras vozes que ouvimos, quando somos bebés. Cucu! Cucu! Eu tenho muito soninho, fiz cocó e a mamã mudou-me a fralda e agora tenho muito soninho. Quando somos bebés, toda a gente nos fala com voz de falsete, mesmo os que normalmente são os mais adultos, certinhos e responsáveis. Há dias ouvi a minha mãe falar com voz de falsete para a minha sobrinha de dois meses. Fiquei surpreendido e aterrorizado: era a primeira vez em 30 e poucos anos que ouvia aquele tom de voz a sair da minha mãe. Não fazia ideia que ela conseguia falar assim.

Com o tempo nós próprios vamos aprendendo o uso da voz de falsete. Primeiro de uma forma muito inocente, quando estamos a brincar. Eu sou o Homem Aranha e vou-te apanhar. Ou Olá, eu sou a Barbie, queres tomar chá comigo? Ou o simples mas eficaz Nha, nha nha nha, nha!. Mas é à medida que crescemos que nos apercebemos, inconscientemente, que a nossa voz de falsete se vai transformando numa arma poderosa. Como um Anakin Skywalker à espera de se tornar Darth Vader. A voz de falsete dá-nos um dos poderes ocultos do Lado Negro da Força: o de influenciar uma história a nosso favor.

Para o ilustrar preparei uma pequena história. Vou-me socorrer do itálico para transcrever a voz de falsete: seria bom que imaginassem a forma como soaria aos vossos ouvidos.

A Carolina zangou-se com a Sónia. Tinha-lhe pedido umas aulas emprestadas mas a Sónia não as quis emprestar. A Susana ouve, muito interessada, a história da Carolina:

- E eu cheguei ao pé dela e disse "Ouve lá, não te importas de me emprestar a aula de Matemática de ontem?". E ela, logo, toda histérica: "Porquê? Andaste na borga e faltaste à aula outra vez?"
- Que parva, tem alguma coisa a ver com o que tu andaste a fazer?
- E eu disse, "Não, tive de ir ao médico, e parece que a aula era importante, já que tu fazes os melhores apontamentos...".
- E faz, fica tudo muito explicadinho.
- Pois faz, até era um elogio que lhe estava a fazer. Mas vem-me aquela gaja e diz "Pois, foste ao médico, foste! Não te empresto nada, que é para aprenderes!"
- Olha, para aprenderes o quê, a não ir ao médico?
- Só se for isso... Eu disse-lhe logo "Olha, estás a ser injusta, quando tu precisaste da minha ajuda também te ajudei." E vem logo ela: "Ah, não me lembro de ter precisado de ti para alguma coisa..."
- Não se lembra... é mesmo parva! E que é que tu fizeste?
- Então, vim-me embora, adiantava alguma coisa estar a discutir com aquilo?

Entretanto, noutra parte do Mundo, a Sónia está a contar à Cláudia a mesma história:

- Eu vi logo que ela vinha com ela fisgada. E chega ao pé de mim e diz: "Ouve lá, não te importas de me emprestar a aula de Matemática de ontem?"
- Que descaramento, depois da borga onde ela andou ontem!
- Pois, eu bem sei, perguntei-lhe logo "Porquê? Andaste na borga e faltaste à aula outra vez, não foi?". E ela ficou fula. Depois disse "Ah, não, tive de ir ao médico".
- Bem, que desculpa mais esfarrapada!
- Depois começou a dar-me graxa, a dizer "Ah e tal, parece que a aula era importante, e que tu fazes os melhores apontamentos...". E eu disse-lhe "Pois, foste ao médico, foste... Olha, desta vez não te vou emprestar nada. É para tu aprenderes."
- Fizeste tu muito bem!
- Cala-te, que ela ficou zangadíssima! Começou a disparar, "Estás a ser injusta, estás a ser injusta! Quando precisaste da minha ajuda também te ajudei!"
- Ah ah, que piada! Alguma vez precisaste dela para alguma coisa?
- Foi o que eu lhe disse, muito calmamente: "Olha, não me lembro de ter precisado de ti para alguma coisa...".
- Boa, boa, e o que é que ela disse?
- Ela? Não disse mais nada, foi-se embora a resmungar...

Exercício:
1 - Quem é que acham que tem razão?
2 - Quem é que a Susana acha que tem razão?
3 - Quem é que a Cláudia acha que tem razão?
4 - Que é que aconteceu afinal?

Penso que começarão agora a perceber como a voz de falsete (em conjunto com o já famoso "quem conta um conto acrescenta um ponto") é uma arma poderosíssima. Ela tem o poder de menosprezar, de diminuir, de ridicularizar o testemunho da outra pessoa, fazendo, em contrapartida, valorizar o nosso. Dependendo do tom que imprimimos à nossa voz de falsete, a pessoa de quem se fala pode passar por comediante ou palhaça (o usual), por importante ou snob, ou por, pura e simplesmente, má. E reparem que isso acontece em qualquer um dos lados da história, por isso a verdade dos factos não é para aqui chamada. A voz de falsete efectivamente anula a verdade dos factos.

Nem é preciso falar de uma pessoa, a voz de falsete funciona com objectos, com eventos, com situações. Vejamos alguém que fala de um grupo de rock:

- Ei, Carla, já ouviste a última dos Drive Shaft? É muita porreira!
- Ó Sérgio, Drive Shaft? Que parolice! You all, everybody! You all, everybody! Achas que isso tem algum jeito?
- Bem, se pões as coisas nesses termos, acho que não...

Perguntam-me vocês: como combater a voz de falsete? A resposta é: não se pode. Estando alguém já influenciado no rumo da história através da voz de falsete, não há quaisquer factos ou argumentos que o façam mudar de opinião. O máximo que podem tentar é usar a voz de falsete a vosso favor, tanto a título preventivo como correctivo, mas cientes de que a prevenção é a melhor escolha. Agora que sabem o poder oculto da voz de falsete, poderão usá-lo mas com moderação, não cedam ao Lado Negro da Força.

E nunca, mas nunca, resistam à tentação de falar de vós próprios em voz de falsete, porque falar com esta vozinha irritante é muito estúpido, ficamos ridículos e perdemos toda a credibilidade.

A não ser, claro, que o façamos à frente de uma estante de livros.

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